UMA VIAGEM AO FIM DO MUNDO – III

UMA VIAGEM AO FIM DO MUNDO – PARTE III

A apresentação dessa viagem será feita em seis partes.

TEXTO: ALCIR SANTOS
FOTOS: ALCIR SANTOS e ANTÔNIO CARLOS AQUINO DE OLIVEIRA

À noite, como previsto pela tripulação, à medida que avançávamos pelos canais Gabriel, Magalhães e Cockburn, o mar ficou ainda mais bravio. A bordo, o estranho bailado de pessoas tentando se equilibrar enquanto caminham. Lá fora, ondas enormes se desmancham ruidosamente sobre as janelas inferiores. No mais, a escuridão e, vez por outra, um rasgo de brancura da espuma deixada na esteira do barco. Em tais circunstâncias a cama se afigura como um bom e seguro refúgio; deitado, o balanço do navio é quase como um acalanto. Mas, pela madrugada, mar ainda mais agitado, é preciso saltar da cama, colocar algumas coisas no chão e prender portas que teimam em bater, perturbando o sono.

Amanhece e o quadro não se altera. Mar agitado e vento, muito vento. Paradoxalmente, a paisagem é de cartão postal. Montanhas coroadas de branco, ilhotas de pedras desnudas e aves que voam, ora acompanhando o navio, ora em rasantes tocando a superfície líquida, ora subindo a grande altura e descendo como flechas, fendendo a água para tentar capturar o alimento. O melhor é quando, no último segundo antes do mergulho, arremetem a saem voando.  Faz frio e a neve que cai se acumula num tapete branco, muito escorregadio nas áreas externas do barco. Temperatura na casa dos 3, 4 graus Celsius. Dentro do navio, protegidos e agasalhados, o melhor é ficar quieto, silente, contemplando o bucolismo da neve que cai em flocos que se desmancham nas janelas ou revoluteiam carregados pelo vento…

Agora a navegação segue pelos canais Ballenero e O’Brien, em demanda de um braço do Canal de Beagle para chegar ao Fiorde e Glaciar Pia.  O tempo continua fechado, instável. De repente se abre e o glaciar fica visível e aparentemente acessível; no momento seguinte vem a cerração e neve.   A temperatura cai bruscamente de 9 para 4 graus. Prontos para o desembarque, recebemos orientação para aguardar. O tempo melhora. Os botes são baixados, os grupos se alinham e em poucos minutos desembarcam para caminhar por uma trilha pedregosa costeando o glaciar.  A temperatura cai mais ainda e a neve fustiga. A caminhada prossegue, embora um pouco mais lenta. Importante é chegar bem perto e apreciar o glaciar. Com cerca de 400 metros de largura está, como a maioria deles, em processo de regressão, ajudando a reconstruir a natureza. À medida que perde massa vai abrindo espaço ao surgimento de vegetação, que inicia com os líquens até que, com a natural evolução e o passar de muitos anos, surge a tímida floresta, um simples bosque.

Sem dúvida uma experiência inesquecível para quem está habituado com a riqueza e exuberância de matas e florestas tropicais. É tudo novo, diferente, outra realidade.  A luz solar vivifica e aquece o solo ainda débil. A flora vai se formando, evoluindo, preenchendo o espaço que antes era totalmente gelado. Aqui se pode sentir o milagre da vida, a natureza se reinventando no seu ritmo milenar. Não por acaso o cuidado do pessoal da Australis, especialmente os guias, em chamar a atenção dos expedicionários para não pisar, não cortar, não tocar. Tudo é muito frágil. Um ecossistema novo, uma espécie de bebê que precisa somente de tempo e respeito para crescer e se impor.

Voltam a cerração e a neve; o frio,  com a força dos ventos, maltrata e fere o rosto. Hora de retornar a segurança e ao aconchego do Stella. Já a bordo, bem acomodados no Salão Darwin, visibilidade boa, o programa é, olhos atentos, acompanhar o desfile das enormes massas de gelo enquanto o navio se desloca pela “Avenida dos Glaciares”. Eles se sucedem, exibindo sua singular beleza, debruçados sobre as águas. Romanche, Alemanha, França, Itália e Holanda. Por trás a onipresente Cordilheira Darwin. Em clima de comemoração, com música, os tripulantes servem espumantes e petiscos típicos de cada um dos países que dão nomes aos glaciares. É uma festa! De repente o tempo vira e volta a cerração como se descesse a cortina dando por encerrado o desfile. O mar está calmo, quase sem ondas. A tarde se vai, num clima de paz e recolhimento.

Um detalhe. Em conversa com o capitão Barrientos, perguntamos o porquê do atraso para ir ao Pia já que o cumprimento dos horários, até então, tinha sido rigoroso. A resposta nos deixou mudos. Para liberar o desembarque ele precisava ter toda a segurança possível. Se o tempo mudasse teria de se afastar com o barco o que poderia implicar em deixar os passageiros em terra por umas 3, 4 horas, podendo, assim, causar algumas mortes.

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