SERESTAS DENTRO DA NOITE

SERESTAS DENTRO DA NOITE – CONTO DE ALCIR SANTOS

Presente para você!

Recebi de Alcir esse Conto ontem. Li, imprimi, li mais duas vezes.  Tenho razões especiais para fazê-lo: me transporto no tempo em direção a minha infância, adolescência e história.

Em momentos diferentes, em outros lugares, com personagens e cenários distintos, vivi as mesmas histórias retratadas no Conto, que nada tem de ficcional. Trata-se de uma descrição de fatos ocorridos, história verdadeira, bem contada.

Alcir é meu irmão mais velho, 11 anos mais antigo. Na minha infância fazia muita diferença e por isso ele foi meu Mentor, Guru. O lado da vida que merece ser vivido aprendi com ele, como a apreço pela boa música, pela bela poesia, pela literatura, pela esbórnia, pelo copo e a boa mesa, o respeito e apreço pelas mulheres.

Alcir é um verdadeiro intelectual, o intelectual da minha família. Não conheço intelectual fácil, domesticado, manso, mas os que conheço são pessoas da maior qualidade, estão entre as melhores pessoas que conheço. Lidar com pessoas inteligentes, intelectualmente honestas, de conteúdo nos eleva e faz crescer.

A vida tem um encanto mágico, único: o Tempo – Ilhéus existe ainda, resiste, mas não é a nossa Ilhéus, nada mais tem a ver com a Ilhéus que conhecemos e vivemos, a região do cacau e as fazendas da nossa época. Isso mais que nos ensinar, nos mostra a importância do agora.

Espero que este Conto lhe encante…

Antônio Carlos Aquino de Oliveira

SERESTAS DENTRO DA NOITE

Alcir Santos
Ago/2023 

Só uma condição determinava a saída na noite: a lua reluzindo no céu. Bastava a luz permitir caminhar para que o grupo de três, quatro, no máximo cinco, se reunisse e saísse buscando os lugares onde pudesse fazer sua cantoria com receptividade.

Ilhéus, entre o fim dos anos 1950 e o início dos 1960, não era muito bem servida de iluminação pública. Um poste aqui, outro com lâmpada queimada acolá; “luz de boate”, como se dizia. Circulando, raríssimos carros, poucos pedestres, um casal de namorados aqui, outro bem mais adiante. Quase sempre o silêncio noturno só era quebrado pelo apito do guarda noturno ou pelos gatos em suas tertúlias amorosas.  Uma cidade que acolhia com honras tantos quantos gostassem de viver à noite. Para completar, a possibilidade de assaltos se aproximava de zero ainda que a cidade fosse importante porto marítimo. Também havia famílias que gostavam de se postar nas janelas, interagir com o grupo, pedir músicas, oferecer bebidas, bolachas ou outros acepipes.

Portanto, quando a lua chamava, atendíamos com vontade. Pastorear a noite era dos nossos afazeres prediletos. Sentíamo-nos muito bem sob o manto mágico do céu enluarado, tanto que só tomávamos o caminho de volta às nossas casas quando os primeiros sinais do novo dia começavam a rasgar a semitreva. Noite enluarada rimava com violão e músicas atemporais.

Imprescindíveis ao grupo, o violonista, cantor(es) e quem cuidasse das garrafas, fazendo-as circular de boca em boca. Para completar, nas memórias e línguas afiadas um sem-número de canções, inclusive os “hinos”, e as que eram entoadas quando se aproximava a hora de seguir noutro rumo. Um dos pontos favoritos era o Alto da Conquista, onde ficava o cemitério; ali, se havia necessidade de limões para cortar a cachaça, era só pular o muro e colher os frutos num limoeiro junto ao túmulo de quem se foi acreditando ser importante.

Outro poderoso atrativo: uma família que costumava nos receber com as honras de estilo. Nunca soube se havia parentesco deles com alguém do grupo, namoro com as filhas do casal, ou apenas uma relação de amizade. Numa época em que até telefone fixo era raro, sempre éramos recebidos naqueles lugares com as honras de estilo. Bastava que as cordas do pinho soluçassem as primeiras notas, o cantor emitisse uns poucos versos e lá estavam eles, abrindo as janelas e se debruçando sobre almofadas, num convite mudo mas eloquente para que fossem iniciados os trabalhos. Não raro, além de aplaudir, também pediam músicas de seu particular agrado.

Nem tudo era música. Vez por outra nos acompanhava um colega, exímio cultor da arte de declamar. Dono de repertório variado, bem ao gosto de parceiros e eventual público. A empostação da voz e as coreografias variavam na razão direta da quantidade de álcool consumido. Ele sabia como ninguém modular a voz e dar a inflexão consentânea com as emoções que se propunha passar. Sem dúvida, um artista. Como Castro Alves era o seu vate preferido, viajava do romantismo de “O Laço de Fita” ou “As Duas Flores” ao condoreirismo de “O Século”, “Navio Negreiro” ou “Vozes d’África”; também podia ser soneto de Bilac, Álvares de Azevedo, poema de Gonçalves Dias ou, pasme, Augusto dos Anjos. Dava gosto vê-lo a recitar joias como “Versos Íntimos” ou “Idealismo”. No “Toma um fósforo, acende teu cigarro” era de ver a coreografia; quando era “O amor na humanidade é uma mentira”, a voz atingia modulações muito próprias. Imaginem só a beleza quando a representação dizia respeito ao impagável “Como o Cristo – a liberdade/Sangra no poste da Cruz”! Ah, e quando era o retumbante “Dizei-me vós, Senhor Deus/Se é loucura…. se é verdade/Tanto horror perante os céus?!…”! Valia sim, e muito, vê-lo interpretar e declamar. E nem queiram saber da encenação quando o soneto era “Nua”, precisávamos estar atentos, especialmente se havia famílias assistindo, porque no “Moralistas, perdoai/Obedeci” a coreografia incluía ajoelhar-se, braços abertos, fechando-os num abraço.

O violão se fazia ouvir, ao fundo, discretamente, não importavam os versos.  Nós outros limitávamo-nos a ouvir, atentos, aplaudindo no final de cada poema e providenciando um brinde em louvor ao companheiro, brinde que, a depender da empolgação, podia se repetir. Nunca soube se outros grupos de seresteiros contavam com declamadores, mas o nosso tinha esse diferencial.

Entre os intervalos poéticos, a seresta seguia com seu repertório fundado no melhor do cancioneiro brasileiro. De quando em quando, podia pintar algum clássico de Bienvenido Granda, Nat King Cole, Chaplin ou outro da estirpe. Certo é que seresta de verdade tinha de ter Lupicínio, Silvio Caldas, Pixinguinha, Orestes, Orlando Silva, Noel, Dolores Duran, Nora Ney, Ângela Maria, Maysa, Ary Barroso, Caymmi, Mário Lago, Antonio Maria, Marino Pinto, Lourival Faissal, Custódio Mesquita, Herivelto Martins e outros da mesma categoria. Os “hinos”, as músicas que nos faziam transcender, sempre aconteciam. Nessa categoria se inscreviam canções atemporais como “Carinhoso”, “Amendoim Torradinho”, “A Noite do Meu Bem”, “Onde Anda Você”, “Nada Além”, “Último Desejo”, “Feitio de Oração”, “Ela Disse-me Assim” e tantas outras que a memória cansada já não guarda. Destaque especial para aquela que tem tudo a ver com noite, luar, seresta e amores desfeitos ou inalcançados: “Prece ao Vento”, de Alcyr Pires Vermelho e parceiros. Era de se ver a uniformidade do coro que se fazia para acompanhar o cantor, todos numa espécie de transe, vivenciando os versos que reverenciam o vento, entidade capaz de dizer onde se esconderam os amores inalcançáveis.

Bem verdade que não era em todas as saídas que encontrávamos acolhimento. Não mesmo. Não raras vezes, as janelas permaneciam cerradas e até luzes dentro da casa se apagavam. Também não adiantava apelar para Cândido das Neves e Índio, rasgando o silêncio da noite com “Lua/Manda tua luz prateada” e “Canto e por fim/Nem a lua tem pena de mim”. Sabíamos quando não estávamos agradando. Então, hora de tomar novos rumos. Afinal, na noite, ainda mais sendo de lua cheia, sempre havia ouvidos carentes de algumas carícias musicais, ainda mais se entoadas por quem sabia cantar e ao som de violão.

Muitas vezes terminávamos na praia, tanto fazia que fosse a da Soares Lopes ou outra mais distante. Ali sentados, ou deitados na areia, podíamos, livremente, entoar nossos cantos, viajar na beleza da lua exibindo-se para o mar, iluminando suas águas, dizendo do seu amor. Afinal, aprendemos que “Se a noite é de lua/A vontade é contar mentira e se espreguiçar/Deitar na areia da praia…” Como, na época, não ficava bem que as moças ditas de família fossem fazer serestas na praia, contávamos com as outras moças, as que se juntavam ao grupo quando terminavam o expediente. Nessas ocasiões, serenata virava festa, muitas vezes com banhos de mar e casais que se afastavam discretamente do grupo para voltar algum tempo depois, cantando com mais empolgação. Ninguém comentava nem fazia perguntas. Cada um sabia de si e assunto encerrado.

Acontecia de nos encontrarmos, todos de mãos abanando, nem um pobre tostão para remédio. Aí era torcer para que janelas se abrissem e mãos generosas ofertassem algum tipo de bebida. Não importava tipo ou marca, todas eram muito bem recebidas. Noutras vezes, um ou dois se afastavam, iam em casa e de lá voltavam com uma garrafa ou litro. Que alívio! As músicas saíam mais límpidas e fortes, as palavras bem pronunciadas. Nessas noites de penúria, saíamos perambulando pelas ruas rumo à boate OK, então uma espécie de templo a que recorriam os deserdados da noite, carentes de socorro etílico. Ali funcionava também um cassino onde sempre era possível encontrar alguém disposto a socorrer os amigos da noite.

Numa dessas caminhadas de fé e esperança, fomos surpreendidos com uma situação num só tempo bizarra e milagrosa. Num dos cruzamentos da Marquês de Paranaguá, um despacho ou ebó, sabe-se lá, atraiu nossos olhares, e passamos a prescrutá-lo cuidadosamente. Entre os itens de sempre, farofa, pipocas, fitas vermelhas, velas, frango etc., estavam duas atraentes garrafas de cachaça. Uma ideia brotou das nossas cabeças.

O mais atirado chegou bem perto e observou que uma delas estava aberta, portanto fora de cogitações. Ninguém ia correr o risco de sequer tocar nela, muito menos experimentar o líquido. Ocorre que a outra estava fechada. Ele se aproximou ainda mais e notou que a tampa estava até selada. Sem mais, estendeu a mão e tirou a bendita garrafa de lá. Alegria e receio. Sabíamos perfeitamente que a convidativa vasilha continha um líquido que era parte de um trabalho do povo de santo, portanto, um objeto sagrado, capaz até de nos causar algum mal. A necessidade, naquelas circunstâncias, falou mais alto. Garrafa na mão, afastamo-nos e sentamos na calçada para decidir o que fazer. O receio acabou perdendo. Fizemos um pacto de que todos tomariam. Depois do primeiro gole, líquido aprovado, seguimos dentro da noite enluarada. Afinal, as coisas estavam nos seus devidos lugares. E agora na companhia de um líquido abençoado! Tão abençoado que a noite acabou em festa, seresteiros derramando seu estro, ouvintes atentos aplaudindo e recompensando com bebida e algum de comer.

Era uma realidade bem distante do Rio de Janeiro, o lugar onde as coisas aconteciam na época. Na metrópole do Sudeste, a noite fervia com um sem-número de restaurantes, bares, boates e casas de espetáculos, onde o destaque inconteste era o Teatro de Revista, também conhecido como Teatro Rebolado. O produtor Carlos Machado era o “Rei da Noite”. As notícias, e fotos, nos chegavam pelas páginas de Manchete, O Cruzeiro e, em menor escala, pela Revista do Rádio. Contumazes cultuadores dos catecismos de Carlos Zéfiro, quedávamo-nos embasbacados com a beleza daquelas mulheres, seios incríveis, corpos de curvas exuberantes, semicobertos pelas roupas ousadas, ornadas de paetês, vidrilhos e muitas plumas. Para nós, restava a vontade e o sonho de assistir a um espetáculo daqueles. Sabíamos da nossa impossibilidade. Afinal, morávamos na província distante e sequer podíamos cogitar ir ao mítico Rio de Janeiro.

Mas Ilhéus era cidade de gente ousada e de dinheiro; pelo seu porto chegavam tecidos, gêneros alimentícios e tudo o mais que a indústria produzia para consumo das pessoas. Em contrapartida, saía o cacau e alguns dos seus derivados. Além disso, o Campo de Aviação do Pontal, herança deixada pelos Aliados, vulgarmente conhecido como “Aeropasto de Ilhéus”, recebia os DC-3 e outros aviões de passageiros, da Real Aerovias Nacional, Panair e Cruzeiro do Sul.

Juntando a existência de transporte com a ousadia de D. Nanã – a matriarca da boate OK – e o poder de fazendeiros e exportadores de cacau, eis que um dia aporta na Princesinha do Sul o bendito Balé de Carlos Machado com suas sonhadas vedetes. A cidade ficou em polvorosa. As aves noturnas, os notívagos e os boêmios já sonhavam com os espetáculos. Desprovidos de fundos, passamos a cogitar formas e meios de entrar no recinto, nosso porto seguro de sempre, mas agora inalcançável. Sabíamos todos que D. Nanã nos considerava, até conhecia nossos pais e mães, mas não admitiria sócios fundadores (aqueles que “fundam dentro”) naquele evento. Complicado. Certamente, o acesso seria cobrado. Assim, entre conversas, esperanças e desesperanças, chegou o dia da estreia. Nem pensar em ir: o preço da entrada estava a quilômetros das possibilidades!

Sempre tem uma saída, afinal os deuses da esbórnia cuidam dos seus fiéis. Os espetáculos ocorriam às noites. No resto do dia, a entrada era liberada já que as moças que ali viviam como inquilinas, também recebiam clientes e amigos, especialmente à tarde. Tínhamos relacionamentos de amizade com algumas delas. Era costume visitá-las à tarde, bater papo, ver se podíamos ajudar em alguma coisa, apreciar, e aplaudir a preparação para a noite, o pintar de unhas, o ajeitar de cabelos e as vestes. Naturalmente, as vedetes de Carlos Machado foram se aproximando delas, aproveitando os ensaios às tardes para trocar ideias, procurar saber das coisas de Ilhéus. Por esse desvio é que fomos chegando, conversando, brincando, até que umas poucas se interessaram por um programa muito especial, privilégio de uns poucos, fazer a travessia Ilhéus/Pontal/Ilhéus à noite, de canoa, em noite enluarada.  Como a sorte não abandona os que cultivam sonhos bons, a lua cheia estava chegando e o pessoal do balé teria uma noite de folga na segunda-feira seguinte. Pronto! Entramos no melhor dos mundos, poderíamos, sim, fazer uma bela serenata na então tranquila praia da frente, no Pontal. Melhor, impossível!

Tempo de correr para combinar com algum pescador, dono de canoa grande, amigo do peito, das noites e das serestas. Sempre se dava um jeito, afinal tínhamos amigos de fé entre eles. E quem tem amigo nunca está sozinho. Conversa daqui, procura dali, acabamos combinando com Manelão, um sujeito enorme, de gargalhadas tonitruantes, conhecido e respeitado no mercado e adjacências por sua força, espírito de colaboração e generosidade. Com ele, a travessia estava assegurada. Conhecia todos os macetes da Foz do Rio Cachoeira, inclusive os pontos em que era possível cruzá-la a nado, contando coma ajuda de uma coroa de areia ali existente. Restava providenciar bebida e comida, questão de correr atrás. Depois de garantir a travessia, isso seria o mínimo.

Não deu outra: uma noite mágica. Quem viveu coisas assim, nunca pode esquecer. Puro enlevo! Na hora combinada, encontramo-nos na rampa do Mercado e tomamos nossos lugares. Manelão impulsionou a canoa, pulou dentro, puxou o varejão e lá fomos nós. No céu, a lua cheia, enorme, espargindo sua luz e refletindo nas águas tranquilas, ali bem próximo de onde o rio abraça o mar. Logo o violonista começou tangendo as cordas do pinho afinado. Rápida troca de sinais e uma voz se ergue entoando os primeiros versos do clássico de Catulo da Paixão Cearense: “Não há, ó gente, ó não…” Outras vozes se incorporaram ao coro e então se instalou um clima da mais pura confraternização. A seguir, veio “João Valentão” do mestre Caymmi, e não parou mais. Adiante, alguém aproveitou uma pequena pausa e tascou “Os teus lábios tem o mel que a abelha tira da flor…” Outro não deixou a bola cair, “Esse alguém já não me ama, esqueceu você também” E olha que ainda estávamos na travessia! Ao som do violão e da cantoria, em volume que cabia como enfeite da noite de pura poesia, temperada por generosas doses de bebida, singramos seguros pelas mãos treinadas do pescador-canoeiro até as areias macias e ainda mornas da Praia da Frente, no Pontal de Ilhéus – maré seca, “no casco”. Bom de deitar na areia, olhar onde a vista não pode alcançar, e melhor ainda para banho porque águas rasas davam mais segurança até para algumas braçadas.

Agora, só festa e alegria! A noite era da lua, do mar, das árvores dos sítios que ali existiam, onde eventualmente aportávamos em tardes amenas para nos abastecer de mangas, goiabas, laranjas, cajus e mais frutas houvesse. Uma das moças abriu uma sacola e serviu sanduíches a todos, outro abriu uma lata de azeitonas, surgiu um bom pedaço de salame, metade de um requeijão e mais coisas aparecendo. Aproveitando a maré vazia, sentamo-nos numa ampla roda, parando de quando em quando para ouvir as meninas do balé dizer o que estavam achando da experiência. De repente, o declamador ergueu-se, fez um sinal ao violonista e tascou um legítimo Camões.“ Amor é fogo que arde sem se ver/É ferida que dói e não se sente.” E foi em frente até o final, sob aplausos entusiasmados. Uma das moças foi até a água e voltou chamando-nos para o banho porque estava morninha, resultado do dia quente de verão. Quase ninguém se fez de rogado e em breve, roupas tiradas, corremos para as águas, uns nadando, outros imersos, em pequenos grupos, conversando e se entrosando com as moças do Rio de Janeiro.

Alguns abraços, beijos, casais se formando aqui, ali e acolá; gente retornando para a areia, se afastando do grupo; outros apenas apreciando os corpos nus das cariocas, bonitas e exuberantes, seus seios firmes, de bicos rijos pelo contato com a água. Foi aí que nosso recitador não se conteve. Virando-se para a bailarina que o acompanhava, com gestos teatrais, largou: “Nua, mas para o amor não existe pejo/Minha boca em sua boca se comprimia…” Seguiu em frente. A moça empolgada, braços soltos, seios à mostra, assistia atentamente. Claro que, a essa altura, estávamos todos atentos ao casal. Para não deixar barato, um outro não se fez de rogado e foi buscar longe: “Fui como um resto de bebida/Que você jogou fora/E na hora/Farto de mim/Me esqueceu…” Aí a garrafa circulou. Afinal, ser “uma taça desprezada” dói lá bem dentro na alma.

De volta às areias, seguiu a cantoria. Alguns casais se afastavam, outros retornavam, tudo na maior paz. Incansável o declamador, braço sobre os ombros de uma das visitantes, tascou um legítimo Neruda: “Tenho fome de tua boca, de tua voz, de teu pelo”, e assim, seguimos cantando e declamando dentro da noite encantada. Até que Manelão largou da mulher ao seu lado, levantou-se e deu a voz de comando: “Hora de voltar!” De algum canto uma voz se elevou. Quedamo-nos de mãos dadas para, em uníssono, cantar um dos hinos sagrados deste país: “Meu coração, não sei por que/Bate feliz quando te vê…” Um momento de puro enlevo.

Na sequência, cuidamos de nos arrumar e pegar assentos na canoa. Assim que nos acomodamos, o violão voltou a repenicar com outro hino: “Minha vida era um palco iluminado…” Sim, nas noites enluaradas, não podia faltar Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Não mesmo. Coisa assim se ouve e acompanha contritos, olhos pregados na enorme lua cheia que faz a noite parecer dia. Naquela hora em que já não é noite, mas também não é dia, depois que chegamos em terra, alguns casais se foram a repousar nos quartos da OK. Quanto às nossas convidadas, disseram-nos nos dias seguintes, simplesmente adoraram a noitada, fazendo com que algumas colegas perguntassem da possibilidade de uma outra.  Tarde demais. A lua cheia se fora e já se aproximava o dia de elas retornarem ao Rio. De nossa parte, seguimos acompanhando as fases da lua, enchendo as noites da Ilhéus de então de músicas e poemas, vivendo um tempo que só se vive uma vez…

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O tempo passou levando os dias, ceifando vidas. As noites já não eram tão generosas para os que queriam apenas viver sem culpas, com a volúpia de que só os jovens são capazes. Chegou 1964, de triste memória. E lá se foi este escriba para Salvador, orgulhoso aluno do Primeiro Científico do Central. Tempo de adaptações – à cidade, ao colégio, aos colegas e professores. Aí tudo caminha vagarosamente, até por força das desconfianças típicas dos interioranos na cidade grande. De repente, chega o dia em que já se está perfeitamente enturmado. Afinidades somadas àquelas coisas que ninguém explica porque, como bem diz a palavra, sentimento é para sentir, não para explicar. Agora tinha até um colega-amigo, Maynard Querino, sonetista da melhor qualidade.

Lá um dia, convidam-nos para uma seresta na Rua da Poeira, em Nazaré. A lua convidava e se impunha, a despeito da intensa iluminação pública. Encontramo-nos e rumamos para o local. Os dois interioranos que faziam parte do grupo eram só expectativa e emoção. Violão soltando seus acordes, uma voz saltando dentro da noite, bateu funda a saudade dos amigos deixados na querida Ilhéus. Mal mergulhei nas recordações e os gritos estridentes das sirenes cortaram a noite. “Corre! Corre! Aí vem as Rita Pavone!” Rápido, dispersamo-nos à procura de um esconderijo. Felizmente ninguém foi apanhado, mas deu para ver os temidos fuscas, pintados de preto e branco, com as letras RP em destaque no capô e nas laterais. Definitivamente, os tempos tinham mudado. Ou seria somente porque Salvador não era Ilhéus? Pouco importa. Boa parte dos sonhos juvenis começava a se desfazer no ar. Tempo de viver outra realidade, acordar para o tempo que se iniciava.

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