O estado inimigo
Quando as cidades estão limpas, as estradas perfeitas e cuidadas, o cidadão tem segurança para exercer o sagrado direito de ir e vir, os esgotos estão canalizados e tratados, a água e o ar têm qualidade, o lixo tem coleta e tratamento, a educação qualifica e liberta, a saúde atende as demandas da comunidade, há democracia e liberdade, há respeito ao dinheiro público, a justiça se faz célere, proba e correta, temos um Estado funcionando, cumprindo o seu dever e papel, sem favores e com méritos.
Esse tipo de Estado não é sonho, existe e é possível. Entretanto, quando nenhum dos deveres essenciais do Estado é cumprido com um mínimo de decência, eficiência, zelo e respeito, temos o que denomino Estado Inimigo.
O Estado Brasileiro, representado pelos três poderes instituídos da república, da forma que existe, opera, funciona e cuida dos recursos e da qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs dessa nação, sem sombra de dúvida é um Estado Inimigo. Toda a sua estrutura sistêmica e orgânica foi concebida para não funcionar e, na prática, funciona mal, de forma irresponsável, perdulária, incompetente e por muitas vezes criminosa.
As mudanças são tão lentas, tão insignificantes diante do tamanho das necessidades imediatas da população, em todos os níveis, que nossos indicadores nos colocam em níveis absurdos nos aspectos civilizatórios mínimos, incompatíveis com o século XXI, com nosso tamanho, riquezas e possibilidades.
A forma com que o Estado Inimigo trata o cidadão comum é perversa, violenta, cruel, discriminatória, preconceituosa, racista e essencialmente burra, posto que, sem equilíbrio socioeconômico mínimo, não haverá possibilidade de desenvolvimento e paz. As mesmas regras de perseguição e burocracia não valem para os bandidos de colarinho branco, para as autoridades e os amigos do poder. Não se pode falar do Estado sem deixar de apontar o dedo para quem o opera, quem ocupa os cargos e funções públicas, quem está no exercício do poder. Quem faz o mau Estado são os homens e mulheres do Estado, os agentes públicos. Tudo então se confunde na tragédia, onde o cidadão comum, contribuinte e eleitor convive com o inimigo oculto, financia o falso amigo e não consegue distinguir o mocinho do bandido.
Jorge Pontes e Márcio Anselmo, no livro Crime.Gov, contam detalhes reais da estarrecedora história recente do Brasil, que, por não provocar consequências e reações na opinião pública, nos levam a crer que qualquer mudança significativa na nossa realidade, se acontecer, será perceptível nos próximos séculos. Prova disso é que, decorridos cinco anos da Lava Jato, estados e municípios estão inabaláveis em suas formas de ser e agir, em suas estruturas arcaicas, na impunidade e na marginalidade sistêmica que eles denominam “Crime Institucionalizado”.
O extinto jornal Bahia Hoje publicou, em 1995, meus artigos “Limites da omissão” e “A reforma necessária”. Em 1996 o Jornal A Tarde publicou um artigo meu intitulado “Brasil, um país difícil” e a Tribuna da Bahia o artigo “Um governo covarde”. Em 2002, o mesmo periódico publicou os artigos “Em defesa dos impostos”, “Cumplicidade e conivência” e “Uma chance à cidadania”. Em 2019, passados mais de vinte anos, o Estado continua sem uma reforma séria, profunda e modernizadora. A sociedade, embora mais informada e até ativa, continua omissa e desatenta para o desafio de ser agente das transformações. Os governos continuam covardes, os impostos sendo roubados e mal aplicados e a cidadania sem chances de sobreviver.
Sim, há mudanças, mas, de tão lentas tornam-se imperceptíveis. As forças de resistências, as mãos poderosas do crime organizado e institucionalizado, os instrumentos da burocracia do mal e do atraso não recuam, não se dobram, resistem e enfrentam a parte do Estado ético, trabalhador, que quer ser amigo, funcionar, mudar para melhor.
Textos, palavras e discursos são insuficientes. A omissão sustenta o desalento, mas a ação dará amparo à nossa esperança.