UMA EXPERIÊNCIA INESQUECÍVEL EM TIPÓN
UMA EXPERIÊNCIA INESQUECÍVEL EM TIPÓN – CRÔNICA DE ALCIR SANTOS
UMA EXPERIÊNCIA INESQUECÍVEL EM TIPÓN
Alcir Santos
04.08.2011
A LAN, sem avisar, alterou o horário do nosso voo e inviabilizou a viagem a Puno. Em Cuzco, com uma tarde vazia pela frente, a empresa de turismo Coltur nos ofereceu um passeio a Tipón, sítio histórico pouco frequentado pelos turistas, localizado a apenas 27 km da capital inca. Aí as coisas ficaram ótimas.
Do quéchua timpuj, Tipón pode ser traduzido como “água fervente”. Teria sido construído por volta de 1.200 d.C., no reinado do Inca Yawar Huaca, como uma espécie de palácio temporário, cercado de terraças onde se faziam experimentos agrícolas e cultivavam cruzamentos do milho. A partir de uma fonte cerimonial, as águas, canalizadas e controladas, são conduzidas docilmente até se perderem terra adentro, indo, enfim, engrossar as águas do rio Vilcanota, que serpenteia e fertiliza o Vale Sagrado. É um lugar encantador. Ali vivemos uma experiência sensorial única.
Após deixar a estrada principal, enfrentamos uma subida complicada. A estradinha de terra, estreita e sinuosa, contorna a montanha enquanto a van vai se apertando, ora à esquerda, ora à direita, quase sempre a poucos centímetros do despenhadeiro. A perícia dos motoristas garante que dois carros possam se cruzar na estrada que mal e mal comporta um só. Ilesos mas meio entontecidos, saltamos da van e nos agrupamos sob o comando do excelente guia Miguel Vergara, uma espécie de xamã, adepto da cosmovisão inca, a espiritualidade andina.
À medida que avançamos terraças acima, uma gostosa sensação de paz nos invade. Somos poucos os visitantes. A quietude nos envolve e acolhe. O sibilar do vento, em parceria com o murmúrio das águas que descem pelas canaletas, faz um som repousante, quase hipnótico. Miguel nos reúne em torno da última fonte e explica o porquê do culto às águas. Com os rios, as montanhas, as árvores e os animais, os homens podem aprender os três ensinamentos fundamentais: munay (amor), yankay (trabalho) e yachay (sabedoria). Neles estão assentadas as três dimensões do mundo: Hanam Pacha (céu/condor), Kaypacha (terra/puma) e Ukupacha (subsolo/serpente). E o mundo vive e se transforma, tocado pelo princípio da dualidade. As energias masculinas e femininas garantem o equilíbrio do universo: fertilidade e criação, macho e fêmea, claro e escuro, sol e lua, terra e água…
Terminadas as explicações, Miguel toma de uma pequena bolsa que carrega a tiracolo e nos oferece as folhas de coca seca que traz consigo, dizendo-nos como mascá-las assim como o fizeram seus ancestrais. Diz-nos que a folha seca é rica em nutrientes que permitem que os nativos possam suportar o frio, o ar rarefeito e até mesmo a fome. Complementando essa espécie de ritual, oferece-nos estévia moída e ensina que a doçura deste vegetal facilita a mastigação das folhas de coca. Finalmente, saca da bolsa mais uma folha seca, murmura algo e a lança sobre a água que corre. Pede-nos para evitar conversas, apreciar o local e nos deixar envolver pela quietude e pelo som que vem do vento e da água.
Tipón parece engastada nos Andes, como se a cordilheira acolhesse em seu regaço aquele espaço cerimonial por onde corre a água puríssima que vem do alto, bem do alto, para fertilizar as terraças e purificar os homens que ali se banham ritualmente. É um imenso altar erguido no alto das montanhas andinas, tendo aos seus pés o majestoso Vale Sagrado. Ali se fez a comunhão permanente entre o homem – que planta, recebe e colhe o alimento – e a natureza – amada, respeitada e conservada. Ali, os dois se completam num ciclo infindo.
Iniciamos a ascensão por uma larga e imemorial escada de pedra, à direita de quem contempla o santuário. A altitude (3.400 metros), o frio e a baixa umidade relativa do ar fazem arder as narinas a cada nova inspiração, como se minúsculas agulhas se infiltrassem na mucosa. Mais acima, fora da canalização principal, deparamo-nos com uma espécie de banheiro, todo em pedra, com um ponto de água e uma abertura para o exterior. Miguel faz suas abluções e nós o seguimos, inclusive simulando batismos. A água é gélida, mas é agradável o seu contato com cabelos e rostos. Continuamos subindo até que chegamos ao centro cerimonial. A água chega por um único canal. Na queda seguinte, reparte-se em dois; um deles, pouco mais largo que o outro – mais uma vez, a questão da dualidade, do macho e da fêmea. Logo a seguir, os dois se repartem em 4, descendo pelas pedras cuidadosamente talhadas e encaixadas. Da dualidade que faz a vida e o universo decorrem os 4 elementos essenciais, os 4 condutos do centro cerimonial: Água e Terra; Fogo e Ar.
Afastamo-nos da água e, sem perceber, aproximamo-nos do clímax. Miguel nos conduz até um paredão de pedras de frente para uma montanha. Pede que nos encostemos no paredão, palmas das mãos também coladas na pedra. O calor que emana das pedras invade o corpo enquanto o vento frio que sopra forte faz o contraponto térmico. Uma sensação diferente, algo incômoda, algo confortadora. O guia então nos convida a mirar o cume da montanha. Somos banhados e envolvidos pela luz cegante dos últimos raios do sol, que, logo a seguir, descamba por trás da montanha. Alguns poucos segundos de puro encantamento. O sentimento é muito forte e a sensação que fica é a de que acabamos de participar de alguma coisa transcendental; tão forte que não sabemos como dizer uns aos outros o que sentimos. Somente o consenso: Miguel foi o diferencial. Sem ele não teríamos vivido tal experiência em Tipón. Impressionante e indescritível!
Encerrada a visita, reunimo-nos ao lado da van para celebrarmos um instante de compartilhamento. Miguel vai dividindo em 8 partes (nós seis, ele e o motorista) as frutas que trouxemos, oferece-nos uma a uma, sem pressa, e assim encerramos a tarde: degustando irmanamente as excelentes granadilla, pepino (não o legume,mas sim uma fruta local), chirimoia e lúcuma, aconchegados aos pés de Tipón. Vale!
imagens: pesquisa Carlos Aquino