TEMPO DE CARNAVAL
TEMPO DE CARNAVAL – CONTO DE ALCIR SANTOS
TEMPO DE CARNAVAL
Mal começou fevereiro e o pessoal já dava sinais de que este ano o Carnaval seria muito bem recebido e festejado. Os anos anteriores haviam dado presságios funestos, é verdade. Primeiro, a Revolta de Jacareacanga, de 1956, no Pará, encabeçada por oficiais da Aeronáutica – major Haroldo Veloso e capitão José Chaves Lameirão –, tentando impedir a posse de Juscelino sob o argumento de que seu governo seria a continuação do de Getúlio. Mais adiante, entre 2 e 4 de dezembro de 1959, a Revolta de Aragarças, no Mato Grosso, agora também liderada por oficiais do Exército ao lado dos da Aeronáutica, buscando armar um golpe militar contra o governo de Kubistchek. Estes deixaram um marco: fizeram o primeiro sequestro de avião na história do Brasil. Não custa ressaltar que tais tentativas tinham como objetivo instaurar uma ditadura militar no país. Assim, uma sensação de coisa ruim pairava no ar. Afinal de contas, em pouco menos de dez anos, o país fora sacudido por duas crises institucionais. A primeira, em agosto de 1954, quando Getúlio Vargas, pressionado por uma espécie de aliança político-militar potencializada pelo atentado da rua Tonelero, preferiu “sair da vida para entrar na história”. A seguinte viria com a inexplicável renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, sete meses após ser empossado na presidência.
Agora é um tempo diferente, faz pouco tempo que o Brasil saiu do primeiro sistema parlamentarista da história republicana, resultado de uma jogada de diversas etapas. Primeiro tentaram impedir a posse do vice de Jânio, João Goulart. Os ministros militares anunciaram a prisão de Jango assim que voltasse ao Brasil, ele que se encontrava ausente do país, em viagem de negócios, por ordem de Jânio, à China. Praticamente na marra, empossaram o então Presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, mas o poder de fato era exercido pela Junta Militar. O impasse só foi resolvido quando o deputado Raul Pilla apresentou a Emenda Constitucional n° 04, instituindo o sistema parlamentarista de governo, aprovada em 02 de setembro de 1961, por 288 votos a favor e 55 contra. Assim foi possível a João Goulart, depois de aceitar as condições impostas, tomar posse em 08 de setembro. Já no dia seguinte, enviou mensagem à Câmara de Deputados indicando Tancredo Neves para Presidente do Conselho de Ministros – Tancredo foi aprovado. Mas as coisas não foram assim tão tranqüilas para os “arquitetos” do Parlamentarismo. Alguns segmentos da sociedade civil se manifestaram publicamente contra a proposta. A Campanha da Legalidade, iniciada por Leonel Brizola no Rio Grande do Sul se ramificou país afora. O apoio à emenda constitucional só foi factível na iminência de um golpe militar.
Tempos borrascosos, é verdade, mas Jango conseguiu navegar e até obteve a restauração do sistema presidencialista graças ao acachapante resultado do plebiscito de 6 de janeiro de 1963, com 83% dos votos a favor do presidencialismo. A esperança se fez presente. O envolvimento da sociedade civil ficou muito claro, sindicatos em ebulição buscando as reformas de base que poderiam levar ao tão sonhado trabalhismo de Vargas. Mas a polarização estava estabelecida. Oposicionistas conservadores, agasalhados na UDN, antepunham-se aos situacionistas, progressistas, filiados ao PTB do presidente. Não por acaso, uma pergunta perpassava as cabeças das pessoas mais politizadas e preocupadas: o governo Jango chegaria ao fim? Tempo de incerteza!…
Em Ilhéus, não. Centro econômico-financeiro da região cacaueira, porto por onde se escoava o grosso da exportação de cacau e seus derivados, também morada de alguns remanescentes do coronelismo, o clima era de euforia. A arroba de cacau atingia preços elevados, a safra tinha sido boa e a Podridão Parda, atacada por novos defensivos agrícolas, não causara maiores danos. A sociedade da decantada Princesinha do Sul, vivia momentos de euforia. A movimentação entre a estação da Estrada de Ferro de Ilhéus, os armazéns de cacau e o porto era intensa. Aumentou a possibilidade de ganhos, indistintamente. Carregadores, carroceiros, donos de bares, botecos e até as damas da noite comemoravam. Portanto, fácil entender a agitação do povo: se o dinheiro circulava, sempre sobraria algum, até para os deserdados da sorte. Em tal conjuntura, a euforia para o Carnaval era intensa, com o pessoal cuidando de se organizar para a festa. Os sucessos dos carnavais de sempre já estavam na boca de todos; a todo o momento, em todos os lugares, era possível ouvir marchinhas e sambas como Brigitte Bardot, Vou Beber Até Cair, A Lua é dos Namorados, Índio Quer Apito, Amélia, Nega do Cabelo Duro, Ô Abre Alas, Mamãe eu Quero…
Malandros de todos os naipes não se furtavam em sair cantando, ou até assoviando, a escrachada paródia do estribilho de Cachaça Não É Água, marchinha de 1953 do baiano, Marinósio Trigueiros Filho: “Você pensa que mulher é manga/Mulher não é manga não/ Manga se amassa e chupa/ Mulher não se amassa não.” Para completar, um cumprimento de duplo sentido. Daqui salta o grito “Botei a cana no fogo”; dali a resposta, “A cana não quis assar”, então o coro repetido de “Assa cana, assa cana”. Pelos bairros a palavra de ordem era o preparo dos afoxés e blocos; também da batucada de Henricão e da escola de samba de Seu Neném. Tempo de cuidar das fantasias, dos tambores, cuícas, tamborins e dos ensaios. O Comércio, feliz, se movimentava para atender à demanda de chiffon, musselina, tecidos, miçangas, brilhos e tudo o mais que pudesse ser usado para confeccionar fantasias e adereços. Tempo de festa!
Diferente dos envolvidos com blocos e que tais, o pessoal da classe média, em grupos estritos de amigos, no máximo quatro, a maioria alunos das últimas séries do colégio municipal, buscava montar seus QGs, aproveitando que as famílias fugiam do carnaval para fazendas e sítios. Definido o local, juntavam bebida e comida para bem viver os dias de festa. Também guardavam roupas, fantasias e tudo o mais que pudessem precisar. A propósito, a fantasia era quase sempre a mesma, de pierrô variando somente nas cores. Até as máscaras eram parecidas. Nos dias de festa, homens e mulheres iam às ruas e aos bailes e se divertiam provocando os passantes para que tentassem identificar quem eram os mascarados. Ou acompanhavam blocos em grupos, cantando os sucessos e assustando os espectadores nas calçadas da grande avenida. QGs e fantasias eram peças importantes na engrenagem dos que aproveitavam o tríduo momesco para extravasar, divertir-se, lavar a alma, incrementando as práticas do pecado da carne, afinal a cidade oferecia praias pouco freqüentadas…
Até então, a cidade não tinha abertura de Carnaval e coisas que tais. O sábado era livre. Mas naquele carnaval resolveram inovar. Pelo menos era a novidade comentada. Pelas bandas da Avenida Beira-Mar e adjacências rolava um burburinho sem fim. A conversa era de que estava sendo preparado um cortejo de arromba para abrir os festejos, ainda no sábado à tarde. Evento novo, do tipo que a cidade ainda não tinha visto, diferente e inusitado. Se verdadeiros os boatos, os responsáveis teriam firmado um pacto de silêncio. Certo, por enquanto, o desaparecimento de tampas dos latões de lixo; os donos estavam reclamando. O resto era silêncio e expectativa. Entretanto, um movimento inusual era visto pela garagem da casa dos Lemos, ali na esquina da avenida. Havia dias a Rural Willys deles estava estacionada do lado de fora. Tonho Poeta, o mais velho, estava sempre junto do irmão Kid Purrão e do amigo, Kid Magro. Onde se encontrava um, encontravam-se os três, o que não era comum. Alguém registrou a chegada de uma caminhonete. De lá retiraram tábuas, serrote, martelos etc. Logo depois, chegou um carpinteiro e ficou trabalhando lá por uns dias. Noutra ocasião, uma caminhonete de fora descarregou dois potes de tamanho avantajado, com as bocas tapadas e parecendo bem pesados. Tudo indicava que dali ia sair coisa. Seria o tão prometido cortejo de abertura? Pelo andar da carruagem, tudo indicava que sim.
Mas enquanto não chegavam os dias de festa, o jeito era aproveitar os gritos de carnaval, fossem nas matinês ou soirées, nos clubes – Social, o da elite, Bancários e Comerciários. Também noutros cantos, a começar pelos mais conhecidos como Betel, OK, Buatinha, Casa de Dalva Zoião, e Casa de Zilda. Sem falar, claro, dos ensaios dos grupos que iriam desfilar. Tudo alegria e festa!
Tradicionalmente, o Sábado de Carnaval se resumia em festas noturnas. No período diurno, o comércio funcionava normalmente no sistema “semana inglesa”, cerrando as portas no período da tarde. Aí aparecia um ou outro bloco de sujo, cantando e batucando, somente para extravasar sabe-se lá o quê. Pois aquele sábado seria diferente. Lá pelo meio da tarde, começou a movimentação em frente à casa dos Lemos, rapazes chegando, sozinhos ou em grupos, ocupando o meio fio. Todos de shorts e camisetas claras. Aberta a garagem, Tonho Poeta e Kid Purrão começaram a distribuir instruções e materiais. Uns receberam as tampas desaparecidas, outros o bumbo, tambores e cornetas. Um rolo de papel higiênico com letras e sinais em vermelho foi passado com instruções especiais. Para completar, retiraram da garagem uma espécie de andor com uma poltrona. Depois, com muito cuidado, os dois potes de barro. Finalmente, apareceu Kid Magro, de peruca loira, vestido dourado comprido, xale estampado sobre os ombros, rosto fortemente maquiado e um gato nos braços. Assim armaram o cortejo que ganhou a avenida. À frente, o papel higiênico, depois os corneteiros e os portadores das tampas, em cinco duplas; seis dos mais fortes suspenderam o pálio, com o magricela sentado na poltrona. Para encerrar, mais quatro, se revezando no carregamento dos dois preciosos potes. Começava a tão esperada abertura do Carnaval daquele ano, sob a regência da Rainha Cleópatra!
Os corneteiros tocavam uma chamada, o arauto abria o “rolo de papiro” e lia que, em nome de sua majestade Cleópatra, estava decretada a abertura do Carnaval. Assim conclamava o povo a festejar com alegria. Cornetas tocavam, bumbo e tambores entravam a batucar, e a “guarda pretoriana” com seus escudos e lanças (tampas de lixo e vassouras) cerrava fileira logo atrás, em frente ao pálio. Recebida com sorrisos, aplausos, assovios e vaias, a parada atraiu algumas pessoas, mas durou pouco. De quando em quando, Cleópatra dava sinal de parada e mandava os “escravos” servirem “Água do Nilo” aos membros do grupo. O pálio era baixado, a água sagrada servida de boca em boca. Em seguida, retomavam o desfile para logo adiante a rainha mandar parar e servir a tal água de novo. Lá pela terceira parada, a água passou a ser servida ao grande público. O desfile não chegou a percorrer uns trezentos metros porque escravos, guarda pretoriana e carregadores começaram dar sinais de que já estavam tocados pelos poderes inebriantes da tal Água do Nilo. Começaram a largar o desfile, abandonaram Cleópatra, e correram ao colo de Iemanjá, que os aguardava de braços abertos para que pudessem lavar o corpo porque a alma já estava bem limpinha. Fato é que o desfile de abertura pode até não ter empolgado, mas ficou na memória da cidade, pelo inusitado, pela originalidade, pelo picaresco. Afinal, por mais grotesco que tenha sido, foi a novidade daquele Carnaval. Kid Magro levou a sobra e teve de incorporar mais um apelido na coleção, sem falar de dúvidas e insinuações, coisa que ele, puta velha, tirava de letra. Quem o chamava de Cleópatra recebia de volta um adeusinho debochado.
No domingo, começando pela manhã, tempo dos blocos de sujos, com suas paródias dos sucessos carnavalescos, bem ao gosto do público; fantasias e máscaras, de todos os tipos, idades e formas, sem faltar, claro, cartazes com piadas e chistes dirigidos a políticos e personalidades de todos os naipes – hora de soltar os cachorros. Começavam pela manhã, invadiam parte da tarde e, não raro, voltavam depois dos desfiles. Estes, de forma organizada, começavam pelo meio da tarde e invadiam a noite. Primeiro os blocos, seguramente o maior atrativo e a maior alegria porque cantavam as músicas da moda e acabavam sendo acompanhados por passantes, espectadores e sujos. Depois, já pelo fim da tarde, a batucada de Henricão, com seu ritmo próprio, marcado pelos tambores e caixas, e o canto muito particular. Também as fantasias bem desenhadas e coloridas eram motivo de comentários. À noite, era a vez da Escola de Samba de Seu Neném, rica de fantasias e adereços, com um número razoável de brincantes. Só voltaria à avenida na terça, despedindo-se da festa. Blocos e batucada, todos os dias. Os caretas, um capítulo à parte, com seus esvoaçantes pierrôs, misturavam-se aos brincantes e zoavam o público na calçada. Nos clubes, as festas varavam as noites. Não raro, ao alvorecer, foliões, sozinhos ou em casais, eram vistos dormindo na praia, alguns em posições comprometedoras. Assim que o sol os apanhava, corriam para a água.
Mas aquele Carnaval, onde não faltaram brigas, escândalos, desavenças, cenas de ciúmes e comentários de sempre, seria lembrando por dois momentos constrangedores. Na tarde de domingo, num QG na Rua General Assis, um fato capaz de mexer com olhos e miolos, ainda bem que visto por poucos na rua deserta. Porém, a matriarca de família ilustre do baronato do cacau, postada na janela, braços cruzados, viu tudo. Com umas tantas nas cabeças, o pessoal resolveu dar um demorado banho numa das moças que estavam com eles. De repente, em meio ao esfrega e ensaboa, ela saiu porta afora, caminhando sem pressa, quase do jeitinho que veio ao mundo, exceto pelos vestígios de espuma e água. Pior, dois ou três malucos saíram em sua perseguição, gritando, pedindo para voltar, tropeçando e segurando sobre o corpo toalhas que caíam, em lances dignos de uma boa chanchada. Finda a festa, com o retorno da família, as coisas andaram quentes para o lado dos rapazes. Desculpas pra cá, promessas de providências pra lá, as coisas se aquietaram, mas ficou melhor evitar aquele trecho da rua.
O outro acontecimento deu-se na Sorveteria Moderna, ponto de convergência da fina flor da sociedade local, como gostava de escrever o colunista social do Diário da Tarde. Início da noite do domingo, gente desfilando e paquerando no calçadão da avenida, quando Cão de Afonso e Espigão chegaram de braços dados com duas das mais requisitadas primas da noite ilheense, Jandira e Nadir. Entre conversas e carícias bem-comportadas, os dois casais chamavam as atenções por onde passavam. Indiferentes, seguiram sem pressa até a Praça da Catedral. Dali foram à sorveteria lotada. Já no entrar, o assombro. Eles? Nem chite! Cumprimentaram a todos com gestos largos de mãos até descobrirem uma mesa, que ocuparam sem pressa. Silêncio! Na sequência, murmúrios indignados, pedidos de contas, arrastar de cadeiras, até que só restaram os quatro, as garçonetes e o caixa. Sem dar a mínima, pegaram o cardápio, fizeram os pedidos, saborearam seus sorvetes, pagaram e saíram em demanda da noite, cúmplice sem igual. Ah, o que noutro lugar poderia ser tido como fato normal, ali naquela Ilhéus conservadora e elitista, ficou como ofensa, inclusive porque catucou os tais princípios resumidos no “Deus, pátria e família”. Deu no que falar, sim. Familiares dos transgressores foram alertados e eles, impedidos de freqüentar a tal sorveteria até que o incidente caísse no esquecimento. Como não eram de freqüentar sorveterias, talvez nunca mais tenham passado por lá.
Findo o carnaval com seus disse-me-disse, piadas e cochichos que se prolongaram por mais alguns dias, a vida voltou a correr com todas as suas variações e interseções. Afinal o dinheiro estava correndo na cidade, promessas de tempo de fartura, mesas cheias. Infelizmente, alegria de pobre dura pouco. Aquele ano traria muitas mudanças na vida de muita gente, a nuvem escura que pairava ainda antes do suicídio de Vargas se adensava a cada dia. As notícias trazidas pelo Jornal do Brasil, Última Hora e O Globo não eram as melhores: falavam de insatisfações, movimentações, reuniões, complôs. Em algum ventre sujo estava sendo gestado o golpe militar, agora liderado pelos do Exército. E assim o país acabaria mergulhado numa longa, terrível noite de vinte e um anos. Os sonhos de muitos dos que fizeram aquele Carnaval, em especial estudantes e sindicalistas, se converteriam em pesadelos.
Alcir Santos